terça-feira, 11 de agosto de 2015

Análise conto "No Retiro da Figueira", Moacyr Scliar.

No Retiro da Figueira

Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranquilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá, ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinquenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homem fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe dele, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; (...) minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro, o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos o primeiro a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário, entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.
 Naquela semana descobri que o prospecto tinha sido enviado a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo, só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de futuros moradores – e viu mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava achando tudo muito bom. Bom demais.
Mudamos-nos. A vida lá era realmente um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã, começavam seu concerto. Os pôneis eram mansos, as aleias ensaibradas estavam sempre limpas. A brisa agitava as árvores do parque – cento e doze, bem como dizia o prospecto. Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem – sempre gentis, sempre sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada: organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista dos parentes e amigos dos moradores – para qualquer emergência, explicou, com um sorriso tranquilizador. O primeiro mês decorreu – tal como prometido no prospecto – num clima de sonho. De sonho, mesmo.
 Uma manhã de domingo, muito cedo – lembro-me que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar – soou a sirene de alarmes. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados – um pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão e festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
 O chefe dos guardas estava lá, ladeado por seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois, sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia, decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
 - Afinal – disse, em tom de gracejo – está um belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
Era mesmo um homem muito simpático. Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
Contrariados ficaram alguns no dia seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. Sempre sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que infelizmente não poderíamos sair – os marginais continuavam nos matos, soltos. Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado cirurgião, o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
— E vocês, por que não nos acompanham? — perguntou o cirurgião.
— E quem vai cuidar da família de vocês? – disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo.
Ficamos retidos naquele dia e no seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas, nós os víamos e reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
Passávamos o tempo jogando cartas, passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada daquilo.
Foi no quarto dia que o avião desceu no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
Um homem desceu e entregou uma maleta ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós — amedrontado, pareceu-me — e saiu pelo pretão da entrada, quase correndo.
O chefe dos guardas fez sinal para que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se fechou, o avião decolou e sumiu.
 Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo de que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.

SCLIAR, Moacyr. No Retiro da Figueira. Contos contemporâneos. São Paulo: Moderna, 2005.p. 76.



O conto
O conto é um gênero definido formalmente pela brevidade. Trata-se de uma narrativa curta, na qual as ações acontecem em poucos espaços e durante um intervalo restrito de tempo. É organizado em torno de um conflito, ou seja, de uma única oposição de forças, contrapondo-se, por isso, ao romance, que é composto de vários núcleos de ação.




Elementos da narrativa no conto

Objetivos:

v  Identificar, reconhecer e analisar as características do conto (plausibilidade ou verossimilhança, caracterização de personagens, sequência de tempo, espaço, enredo, conflito e desfecho).

1. As ações do conto são encadeadas de modo a criar um enredo, composto de uma sequência de situações articuladas em uma relação de causa e consequência. Observe como se dá, em geral, esse encadeamento.

a) Identifique no conto lido cada uma dessas partes.
b) Para envolver o leitor, são introduzidos, gradativamente, indícios que antecipam o acontecimento insólito que levará ao desfecho.  Essas pistas são chamadas índices.  Identifique-os no conto.

2.  Em narrativas ficcionais, o narrador pode emitir comentários ou deixar transparecer sua opinião ou sua impressão sobre os fatos. No conto:
a) O narrador está em 1° ou 3° pessoa?
 b) Transcreva dois exemplos de trechos que revelam uma opinião ou impressão do narrador:
 c) A opção pelo narrador em 1° ou 3° pessoa interfere na emissão de comentários? Explique:

3.  Em contos, a caracterização dos personagens costuma limitar-se ao que é essencial para a compreensão dos acontecimentos, tendo em vista a extensão prevista para esse gênero. Como os seguintes personagens são caracterizados pelo narrador?
 • A esposa:
 • Os guardas:
• O chefe da guarda:
• Os vizinhos de condomínio:

4. Por ser uma narrativa curta, o conto desenvolve-se, em geral, num ambiente restrito, ou seja, o espaço onde acontece a história é pequeno e bem definido. No conto lido:
 a) Onde se passa a maior parte da história?
b) Para justificar a mudança de endereço, o narrador fornece algumas informações sobre sua residência anterior. O que é possível afirmar sobre essa residência?

5. A marcação do tempo dos acontecimentos também é importante para a construção do conto, para que o leitor compreenda o desenvolvimento da história com facilidade. A passagem do tempo no texto é marcada com precisão. Identifique expressões que marcam essa progressão:
6. Além dos marcadores que indicam a sequência dos fatos, alguns acontecimentos têm ocasião bem definida. Com base na leitura do conto, responda:
a) Em que dia da semana o alarme tocou pela primeira vez? Por que você acha que os guardas escolheram esse dia?
b) Como o narrador identifica o fato de que o alarme tocou “muito cedo”?
c) Quando os moradores começaram a ficar contrariados por não poderem sair do condomínio? Que motivo alegaram para reclamar da situação?
d) Quantos dias depois do início da reclusão a polícia chegou ao local?

Bom trabalho!

Importante
Critérios para avaliação: participação, originalidade, pontualidade, integração, compromisso, clareza das ideias e apresentação.



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