No Retiro da Figueira
Sempre achei que era bom demais. O
lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o
prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranquilo, um dos últimos locais – dizia o
anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez
que fomos lá, ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram
sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno,
sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago.
Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio:
Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher
foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons
cinquenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres
de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito
guardas, homem fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos
recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe dele, um senhor tão
inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma
universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira
casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de
minha mulher.
Ela andava muito assustada
ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e
porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de
alguém roubado e espancado; (...) minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de
bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto
colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais
seguro, o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e,
talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher
ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos
pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam,
e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se –
como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos o primeiro a comprar casa
no Retiro da Figueira. Pelo contrário, entre nossa primeira visita e a segunda
– uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida.
O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente
como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos
tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por
causa da segurança.
Naquela semana descobri que o prospecto tinha
sido enviado a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo,
só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de
futuros moradores – e viu mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava
achando tudo muito bom. Bom demais.
Mudamos-nos. A vida lá era realmente
um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã, começavam seu
concerto. Os pôneis eram mansos, as aleias ensaibradas estavam sempre limpas. A
brisa agitava as árvores do parque – cento e doze, bem como dizia o prospecto.
Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam
periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem – sempre gentis, sempre
sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada:
organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista
dos parentes e amigos dos moradores – para qualquer emergência, explicou, com
um sorriso tranquilizador. O primeiro mês decorreu – tal como prometido no
prospecto – num clima de sonho. De sonho, mesmo.
Uma manhã de domingo, muito cedo – lembro-me
que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar – soou a sirene de
alarmes. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados – um
pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão e
festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
O chefe dos guardas estava lá, ladeado por
seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois,
sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que
havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia,
decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
- Afinal – disse, em tom de gracejo – está um
belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
Era mesmo um homem muito simpático.
Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
Contrariados ficaram alguns no dia
seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no
salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. Sempre
sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que
infelizmente não poderíamos sair – os marginais continuavam nos matos, soltos.
Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado
cirurgião, o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos
sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
— E vocês, por que não nos
acompanham? — perguntou o cirurgião.
— E quem vai cuidar da família de
vocês? – disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo.
Ficamos retidos naquele dia e no
seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens
armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas, nós os víamos e
reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
Passávamos o tempo jogando cartas,
passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu
não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada
daquilo.
Foi no quarto dia que o avião desceu
no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
Um homem desceu e entregou uma maleta
ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós — amedrontado, pareceu-me — e saiu
pelo pretão da entrada, quase correndo.
O chefe dos guardas fez sinal para
que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim
pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez
um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se
fechou, o avião decolou e sumiu.
Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas
estou certo de que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia
suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso – que eu, diga-se de
passagem, sempre achei que era bom demais.
SCLIAR, Moacyr. No
Retiro da Figueira. Contos contemporâneos. São Paulo: Moderna, 2005.p. 76.
O conto
O conto é um gênero definido
formalmente pela brevidade. Trata-se de uma narrativa curta, na qual as ações
acontecem em poucos espaços e durante um intervalo restrito de tempo. É
organizado em torno de um conflito, ou seja, de uma única oposição de forças, contrapondo-se,
por isso, ao romance, que é composto de vários núcleos de ação.
Elementos da narrativa
no conto
Objetivos:
v Identificar, reconhecer e analisar as
características do conto (plausibilidade ou verossimilhança, caracterização de
personagens, sequência de tempo, espaço, enredo, conflito e desfecho).
1. As ações do conto são encadeadas de modo a criar um enredo, composto de uma sequência de
situações articuladas em uma relação de causa e consequência. Observe como se
dá, em geral, esse encadeamento.
a) Identifique
no conto lido cada uma dessas partes.
b) Para envolver o leitor, são introduzidos, gradativamente,
indícios que antecipam o acontecimento insólito que levará ao desfecho. Essas pistas são chamadas índices. Identifique-os no
conto.
2.
Em narrativas ficcionais, o narrador
pode emitir comentários ou deixar transparecer sua opinião ou sua impressão
sobre os fatos. No conto:
a)
O narrador está em 1° ou 3° pessoa?
b) Transcreva dois exemplos de trechos que
revelam uma opinião ou impressão do narrador:
c) A opção pelo narrador em 1° ou 3° pessoa
interfere na emissão de comentários? Explique:
3.
Em contos, a caracterização dos
personagens costuma limitar-se ao que é essencial para a compreensão dos
acontecimentos, tendo em vista a extensão prevista para esse gênero. Como os
seguintes personagens são caracterizados pelo narrador?
• A esposa:
• Os guardas:
•
O chefe da guarda:
•
Os vizinhos de condomínio:
4.
Por ser uma narrativa curta, o conto desenvolve-se, em geral, num ambiente
restrito, ou seja, o espaço onde acontece a história é pequeno e bem definido.
No conto lido:
a) Onde se passa a maior parte da história?
b)
Para justificar a mudança de endereço, o narrador fornece algumas informações
sobre sua residência anterior. O que é possível afirmar sobre essa residência?
5. A marcação do tempo dos acontecimentos também é
importante para a construção do conto, para que o leitor compreenda o
desenvolvimento da história com facilidade. A passagem do tempo no texto é
marcada com precisão. Identifique expressões que marcam essa progressão:
6. Além dos marcadores que indicam a sequência dos
fatos, alguns acontecimentos têm ocasião bem definida. Com base na leitura do
conto, responda:
a) Em que dia da semana o alarme tocou pela primeira
vez? Por que você acha que os guardas escolheram esse dia?
b) Como o narrador identifica o fato de que o alarme
tocou “muito cedo”?
c) Quando os moradores começaram a ficar contrariados
por não poderem sair do condomínio? Que motivo alegaram para reclamar da
situação?
d) Quantos dias depois do início da reclusão a polícia
chegou ao local?
Bom
trabalho!
Importante
Critérios para avaliação: participação, originalidade,
pontualidade, integração, compromisso, clareza das ideias e apresentação.
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